Introdução (im)provisória


Ilha da Música Ilhada

Introdução rodopiante (tempestade anterior à calmaria)

Ouvidos todos temos. Todos temos ouvidos. Tememos nossos ouvidos. Trememos. Tremulam as membranas. Quando deixamos de ter medo, tímpanos timoneiam a dança sináptica.

A jangada de pedra* que é esta Ilha de Santa Catarina oscila há duas décadas no meu peito, que está conectado aos meus ouvidos e demais sentidos. Esta é uma escritura em primeira pessoa. Jornalismo cidadão. Experiência vivida.

Ouvidos todos temos. Somos todos ouvidos. E com os que tenho, aproveito desde que descubro boa parte da música autoral feita na também chamada Ilha da Magia, em alusão ao folclore povoado de narrativas bruxólicas, talvez ainda pouco destrinchadas com abordagem semiótica, portanto vistas aquém do potencial transformador que teriam. As sacações geniais do Franklin Cascaes. Fiz uma frase longa. Caso queira ser inteligível, eu sei, digo a quem me lê agora, tenho que me acalmar.

 

Vim parar (e me mover) na ilha

Chegada: 27 de dezembro de 1992. Estamos em 2012. Duas décadas. De cada, experiências diferentes. Beiro os 30 anos de idade, então tenho dois terços de vida ilhada. E com escuta. Mas na adolescência as descobertas ainda eram com a chamada música morta, mais que tudo registrada em fitas K-7 (cassette, para os afrancesados) ou ouvida nas rádios popcorns acessíveis. Dava nush córnu.

Lembro até hoje da descoberta da música instrumental feita ao vivo, que por ser de improvisação bem além do quatro por quatro, tinha tom autoral na releitura: Café dos Araçás, 2000 ou 2001 era o ano, noite, e naquela casinha açoriana Cássio Moura, Toucinho Batera, Arnou de Melo e Leco, quarteto guitarra-bateria-baixo-piano, mostrando o que até então eu só conhecia em CD, sem referência imagética. Me encantou ver a dinâmica da interação pelo olhar, dos convites, dos solos, dos diálogos, das voltas aos temas naquela pegada do jazz moderno, coisa fina, alguma bossa renovadora.

Isso na mesma época em que eu descobria os discos de vinil do Hermeto Pascoal. Nos Araçás. Extinto. Que viria a ser muitos donos e anos depois, em rotações da vitrola vital, sede da ZeroTrack e concomitantemente do Centro de Inovação Social. Deve haver quem nem tenha sabido da existência dessas variantes no tempo para o mesmo espaço, ainda assim o fato é que fez barulho.

Extintores de incêndio.

Agora funciona na casa uma vidraçaria comum do filho da dona, perdeu a graça, o olhar vidrado, o ouvido anestesiado pela serra elétrica. Talvez a senhora sem timo (poderia dizer tino, poderia dizer senso) social e artístico seja boa metáfora para o jogo de cena que, dado nada aleatório, é deletério à música autoral e à economia criativa na cidade pelo trato que recebe do poder estatal e de parte da elite econômica, em que os filhos da repetição cover sempre à boa casa tornam, talvez tecendo rendas montados num boi-de-mamão fake que viaja na maionese pop, enquanto gira na pindaíba etérea e instável a roda dos enjeitados sublimes, que pisam em ovos e preparam a omelete nutrição colorida, chocados com o eco no vazio pardo.

Invisibilidade relativa, disso se trata. Acontece criação autêntica, vista em nichos, em ninhos, em berços esplêndidos, trincheiras pacifistas pela via da arte. Mas a mídia de massa, ignorante das questões cardíacas, tem pouca coragem e falseia a realidade, exibindo jineteadas em CTGs e campeonatos de motocross  em detrimento, por exemplo, de uma oficina franca com Naná Vasconcelos em 2009, no Floripa Instrumental. Fui testemunha ocular, espantada, do fato.

Sem pessimismo gratuito nem crítica negativa depressora, é necessário organizar o discurso ou o fracasso deste colapso verborrágico será impávido colosso. Mas não largo o osso. Tusso e sigo.

A verdade é que tudo é mais complexo do que gostaríamos. E que podemos falar de coisas muito boas feitas nesta paisagem musical insular que é fecunda, florida, promete.

 

 

Música ilhada

A música que se faz na Ilha de Santa Catarina ou está relacionada com ela já rodou o Brasil e o mundo. É uma provocação o título deste amontoado de palavras gráficas áfonas que tratam do intangível que é o campo do som. Já se transitaram as pontes, de cimento e aéreas. As infovias também ajudam na circulação. Os festivais independentes, a web 2.0, as licenças flexíveis, a generosidade intelectual e os modelos de negócios abertos, tudo colabora para a quebra do ovo fértil que dá nascimento a uma ave de vôo amplo (já escrevi isso por aí). O que liberta é o gosto, o gesto genuíno, o resto é resto.

Há catarinenses que foram catar a brecha da matrix bem longe. Um caso é Wado, compositor alagoado (partiu para Alagoas) e algodoado (de algodão), que encontrou em Maceió terreno mais macio. Renunciou à ponte Hercílio Luz, que queria apenas para pedestres. Esparge a arte dele de graça na rede, que balança e faz cair uma chuva boa prazenteira, finalmente, exemplo para a abertura que pode ainda emergir nos corações ilhados, alguns já sensíveis, outros em processo de degelo, todos talvez rumando à dispersão ampla da arte, em que a rega é tão prolífica a ponto de favorecer os brotos que viram comida para as almas sem regra.

 

A música é, das artes, a que mais apta está a servir como ambiência para situações marcantes da vida. Pode ser fruída, fluidamente, de olhos fechados. Provoca dança interna, no nível atômico, bioenergético. Isso, é claro, se viva.

 Alitero para evitar a prolixidade, sem êxito.

Escrever sobre música é tarefa inglória, posto que ninguém aposta um tostão furado no texto como via de acesso à música. A canção é o aval máximo que a palavra tem para fundir-se a ela. Textos que falam sobre música podem ser enfadonhos, por um caráter laudatório, ou por falta de capacidade metafórica para significar algo próximo do acontecido in loco. É louco.

Numa praça, a Bento Silvério, na Lagoa, que é da Conceição, músicos jovens conceberam uma roda de choro aberta para acabar com a tristeza das quartas-feiras, todas de cinza. Isso em 2007, 2008. Por incrível que pareça – e seja -, a polícia interrompeu a iniciativa multicrômica poucos meses depois, quando o movimento musical começava a ganhar corpo. Um poeta já evadido da ilha e que também marcou presença na cultura contemporânea da porção insular da cidade de Florianópolis, a tão difundida Floripa, bem longe dos estereótipos glúteo-praiano-baladeiros, acreano, César Félix, potente na crítica irônica me disse: “A polícia impediu as rodas de continuarem porque o Choro é uma coisa muito violenta”.

De fato no município, a tolerância zero importada e a lei do silêncio são camuflagens da ausência de vontade estatal quanto à tão falada democratização do acesso à cultura. Talvez falte capacidade analógica para perceber que é como com os catadores de latinhas: se organizam pela necessidade, recolhem o que seria lixo e colocam o Brasil na posição de maior reciclador mundial de alumínio. Isso por geração espontânea, sem um plano de governo rígido com finalidades específicas. Se com as culturas autônomas da sociedade civil se fizer o mesmo, a reciclagem da própria sociedade se dará de uma maneira mais bonita. O controle repressivo inibe a capacidade de afeto, que é base imprescindível para um ambiente humano seguro de verdade.

Tratar irrupções criativas na cidade como desvios que devem ser corrigidos parece caminho pouco sábio. Um grupo de tango argentino contemporâneo chamado El Método aportou na ilha em 2011 e sofreu chateações, mesmo enchendo o largo da catedral de uma sacralidade como há tempo não se via. Um trio de chorões uruguaios também sofreu incômodos desnecessários. Um luthier chileno teve as flautas confiscadas arbitrariamente. Tudo isso na rua. Tudo isso na lua em que vivem os déspotas esclarecidos. Que não se informaram sobre a Semana de Arte Moderna de 1922 e jamais se colocaram a questão da antropofagia, muito menos tomaram consciência da fase mais que nunca patchwork do mundo, em que as sínteses são obtidas com base na diversidade.

Um pé na Áustria, outro na Ilha de Santa Catarina. Essa é a realidade vivida há décadas pelo gaúcho de nascença Alegre Corrêa, que tem estúdio no Rio Vermelho e sexteto de música instrumental aclamado e lotador de teatros em Viena e adjacências européias. Epopéias aventurosas de indivíduos temerários. Alegre ganhou o mundo, mas há quem fique na tristeza, a ver mar revolto sem navios que carreguem.

Os argentinos que chegavam aos borbotões, feito revoadas de borboletas, nas décadas de 1980 e 1990, com os penteados diferentes e o portunhol selvagem, não foram os únicos. Ficaram por aqui alguns que tocam bateria em orquestra sinfônica e ao mesmo tempo em grupo de música instrumental brasileira, outros que vão do saxofone à Antropologia com a mesma ginga.

Evoco aqui Aníbal Ernesto Quiroga e Eduardo Ferraro, ambos integrantes do grupo Arreio Sem Freio, com gestação na ilha. O nome é bem adequado: fazem música estruturada, com bons “arreios”, mas cavalgam o som sem recorrer à tortura bucal do eqüino imaginário, no limite da linha entre a liberdade e a disciplina. As composições têm cores pascoalinas (de Hermeto) e também pigmentos de toda a América Latina. Uma das características ímpares do grupo é o uso da baterimba, instrumento percussivo derivado da junção da bateria com a marimba.

Alguém aí já ouviu falar? Ouviu tocar? Arreio Sem Freio! Lançou CD em 2009, que merece ultrapassar mais fronteiras.

 

Harmonia sem Cronologia*   

*Título de música de Hermeto Pascoal

A Ilha de Santa Catarina, além do nome beato, tem também muitos terreiros afros. Samba, Choro, Música Instrumental Brasileira, Jongo resgatado por Luís Canoa, o som do Orocongo do Seu Gentil, Maracatu, Forró, for all.

Existe aqui uma única faculdade de Música, com opções de bacharelado e licenciatura, cuja ênfase é na vertente erudita. Há movimento pela criação de um Bacharelado em Música Popular na Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina), que abriga as graduações existentes. Atitudes corajosas de alguns professores hereges possibilitam a interlocução com a chamada Música Universal, de linhagem Hermética, espalhada pelo contrabaixista Itiberê Zwarg, cujas vindas acontecem em ciclos que se repetem há mais de dez anos. Vieram, voltaram e voltarão. Ele e a trupe. Antes Itiberê Orquestra Família, agora Itiberê Zwarg e Grupo. O próprio Hermeto também já esteve na cidade várias vezes. Na década de 1990, fazendo show no CIC (Centro Integrado de Cultura), sobre o qual ouvi a história de que formou um séquito que em procissão acústica desbordou o centro e integrou a cultura à periferia do teatro, em plena rótula, no meio do trânsito. Em 2008, ao ar livre na mesma praça Bento Silvério, na Lagoa, que abrigou a roda de choro e é lugar de ensaios ao longo do ano do antigo bloco e atual escola bicampeã União da Ilha da Magia. Que mobiliza os integrantes da bateria em ensaios cuja periodicidade semanal cresce até a diária, proporcionalmente à aproximação do carnaval.

  

 

 

 

 

 

Ilha da Música Ilhada (continua…)

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7 pensamentos sobre “Introdução (im)provisória

  1. Felipe Obrer disse:

    Comentários (lá no Facebook) do César Félix ( http://cesinhafelix.blogspot.com/ ) que transcrevo aqui:

    1) “Somente para agregar: acompanhei de perto o início das rodas de choro na pracinha da lagoa. Até porque parte dos chorões dividiam parede comigo. Lembro que a coisa foi parar lá pela pracinha porque nenhum comerciante queria os músicos tocando no seu recinto, diziam que a música iria “atrapalhar” o movimento. Os meninos e as menians sairam do centrinho da lagoa, mais especificamente da “faixa de gaza” e só foram aceitos no lanche do Renato. Revoltados, os músicos tomaram uma decisão: vamos tocar no Renato todas as semanas, de graça, sem cachê, e assim fizeram: toda segunda feira.”

    2) “Aconteceu que a música era boa e os músicos bem articulados, daquela roda de choro nasceu o “margem esquerda”. Início de 2007. A roda servia como diversão, mas também como prática e exercício de choro, local de aprimorar e praticar os conhecimentos musicais, uma troca semanal de informação. Muita gente perdeu o medo de tocar ali naquela roda de choro. Até que a inveja baixou forte, os mesmos comerciantes que não deixavam tocar denunciaram para a polícia. a roda foi impedida, acusada de ser violenta, coisas da ilha.”

  2. Felipe Obrer disse:

    Mensagem do Eduardo Ferraro ( http://www.myspace.com/arreiosemfreio ) que recebi há pouco:

    “obrigado Felipe pelas tuas considerações!!! Seguimos trabalhando para uma integração de sons entre diversos países, não culturas, pois elas são realmente próximas.

    Arreio tende a isso, e a nossa identificação com o som latino-americano é muito grande, mas não por isso negamos uma admiração e o uso de outras vertentes como o jazz ou a música clássica… Seguimos trabalhando, mesmo que silenciosamente….”

  3. Felipe Obrer disse:

    Mensagem da Denise de Castro ( http://denisedecastro.com.br/ ):

    “Obrigada Felipe,
    ilha da música ilhada já diz muito no título…assim me senti muitas vezes mas acho que que agora algumas “pontes” já brotam…”

  4. Felipe Obrer disse:

    Reblogged this on Obrér Culturale comentado:

    Take 1

  5. Guilherme disse:

    Valeu Felipe, é pertinente o texto da música ilhada. Continuo na leitura e avisa das atualizações. Se eu vir um p2 te aviso.

  6. mafra disse:

    então, demorei para me manifestar por alguns motivos:

    a) o texto é longo e merece certa calma e reflexão (sua poeticidade/prolixidade dispersa), daí melhor é deixar a pressa para depois.
    b) de certo modo, felipe, sua fala não deixa muito espaço para um interlocutor. ela afirma aqui, pergunta acolá, mas, de modo geral ilumina pontos com uma precisão que se bastam. note, isso é, antes, um elogio – que fique claro.

    de todo modo e todavia e porém, deixo aqui meu relato pessoal.

    sou alguém que (com outros, claro), já há alguns anos vem articulando politicamente com a categoria, músicos/produtores/adjacências, e com o poder público e, conforme venho caminhando, cada vez mais me sinto cansado disso tudo… sei lá… atualmente penso, fiz e faço e farei o possível, no mais, quero mais é construir as minhas pontes, meu espaço. sim: “meu”. mas de quem mais quiser vir comigo. do modo que der. mas com alguma solidão e nenhum egoísmo. se não estou sendo claro, tomemos uma cerveja. ela antes, e depois, do almoço é muito bom para ficar pensando melhor…

    agora, de todo modo, como teu olhar se lança sobre um cenário musical que, embora eu conheça e admire, não é aquele com o qual tenha intimidade, não sinto que tenho muito o que acrescentar… ainda assim, faço um reparo: esse “universo cover”, tão poderoso por aqui, embora não me seja caro, é importantíssimo para economia da música feita nesta terra. no mais, não vejo tanta diferença entre esse (mundo) e um outro, o dos sambas e choros e suas “raízes”. para mim (salvo as exeções) é tudo celebração ad infinitum d’um passado idealizado.

    por mim, aquele abraço e a torcida pelo desdobramento da conversa.

    p.s. com eduardo ferraro, césar félix e guilherme ledoux, não tem como este espaço não parecer atraente.

    • Felipe Obrer disse:

      Jean, muchas gracias pelo comentário! Achei elucidativo. Me pôs pra pensar. Quanto à cerveja, seja antes ou depois do almoço, passo. Não bebo há três anos e pouco. É uma opção que tem me deixado mais confortável. Mas liberdade total, inclusive no campo etílico, pra quem quiser. =)

      Então… Ainda gostaria de ver teu relato lá na seção relatos. Senti falta de falares dos teus trampos com banda, autorais, seja Bonde Vertigem seja qual outra for.

      Que mais? Essa introdução (im)provisória é o que o nome diz, maleável, flexível, pronta para mudar.

      Agradeço tua participação por aqui e qualquer ajuda para espalhar a notícia entre os músicos e o público e os produtores e os jornalistas…

      Abraço!,

      Felipe

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